Adensamento: o pretexto para privatizar o cais público sem licitação

No Porto de Santos, a “eficiência” serve de fachada para a ineficiência planejada e o privilégio de poucos.


Foto: Projeto do Terminal STS14 em Santos

O adensamento, salvo melhor juízo, é uma jabuticaba criada para facilitar a transferência de bens públicos à iniciativa privada sem licitação. É simples assim.

A fórmula encontrada pelo legislador para dar um verniz de legalidade a esse artifício aparece no § 6º do Art. 6º da Lei dos Portos (Lei nº 12.815/2013):

“O poder concedente poderá autorizar, mediante requerimento do arrendatário, na forma do regulamento, expansão da área arrendada para área contígua dentro da poligonal do porto organizado, sempre que a medida trouxer comprovadamente eficiência na operação portuária.”

O caso do Porto de Santos

No cenário que estamos vivenciando em Santos, o uso desse dispositivo para justificar a entrega de área pública de cais, sem licitação, à iniciativa privada parece, no mínimo, forçado.

  1. Não se trata de mera “expansão de área”

Ainda que eu não goste do conceito de entregar áreas públicas sem a devida licitação, quem arrenda áreas de armazéns poderia expandir, logicamente, para áreas de natureza semelhante. Não para áreas mais nobres, mais raras, mais caras. O que se vê, no entanto, são empresas arrendando áreas secas e, em seguida, sendo contempladas — sem licitação — com berços de atracação, que têm valor logístico e econômico muito superior.

Cais e áreas secas têm funções distintas e valores radicalmente diferentes. Um berço de atracação tem valor exponencialmente maior do que qualquer área de retaguarda. E mais: uma área seca com acesso exclusivo a um berço de atracação se valoriza enormemente em comparação com uma área sem esse diferencial.

Se a licitação tivesse sido para terminais marítimos — ou seja, áreas de armazenagem com acesso a cais exclusivo — o interesse do mercado teria sido bem maior e, consequentemente, a quantidade de concorrentes e o valor de outorga também.

Licitaram uma coisa, e o Estado está entregando outra — muito mais valiosa — sem nova licitação.

O argumento de que o simples fato de a área ser contígua justifica sua apropriação pelo arrendatário é tão descabido que, por esse raciocínio, essas empresas vão acabar se apossando da Avenida Perimetral do porto. Afinal, ela também é contígua, e eliminar o tráfego ali poderia lhes “trazer ganhos de eficiência”…Além de eliminar o trafego de caminhões, até porque eles só gostam mesmo é de trens…

  1. “Comprovados ganhos de eficiência”?

O Porto de Santos, nos últimos anos, aumentou significativamente o volume de descarga de fertilizantes e reduziu o tempo de espera de navios — este sim um verdadeiro ganho de eficiência.

Esse avanço foi resultado da melhor gestão das áreas públicas, do investimento dos operadores portuários que atuam nesse segmento e do trabalho árduo dos trabalhadores no setor portuário, em sentido amplo, de todos os trabalhadores que movimentam a complexa engrenagem que faz a carga sair dos porões dos navios até o armazém dos importadores e vice vice-versa, nas exportações.

Por outro lado, a ociosidade de berços de atracação — o ativo mais valioso do setor portuário — representa ineficiência. Ineficiência potencializada quando há fila de navios esperando na barra, gerando prejuízos volumosos de demurrage para os importadores.

O caso do berço 34

A Autoridade Portuária de Santos acaba de retirar o caráter público do berço 34 e entregá-lo, sem licitação, à Eldorado Celulose. Com isso, operadores portuários foram impedidos de descarregar fertilizantes ou qualquer outra carga ali — mesmo quando o berço está ocioso.

E ociosidade será o nome desse berço, se essa situação absurda não for corrigida.

O contrato firmado com a Eldorado prevê o embarque de 799.000 toneladas por ano de celulose (item 7.1.2.1), a uma prancha de 470 toneladas/hora (item 7.1.2.2.I). No mesmo contrato está estabelecido que a prancha é calculada dividindo-se o total carregado pela tempo total que o navio ocupar o berço. Dividindo o volume contratual pela prancha contratual, temos:

799.000 toneladas ÷ 470 toneladas/hora = 1.702 horas de ocupação do berço.

O porto opera 24 horas por dia, 7 dias por semana, resultando em 61.152 horas de disponibilidade anual (já descontando feriados como Natal e Ano Novo).

Ou seja: o berço seria utilizado apenas 3% do tempo.

E não — a Eldorado não tem movimentado volumes muito superiores ao contratado. Os números da Autoridade Portuária de Santos estão aí para comprovar:

Se o tal “adensamento” já estivesse em vigor em 2024 e a Eldorado tivesse cumprido a prancha mínima, ela teria ocupado o berço por 71 dias no ano. Os outros 294 dias ficariam ociosos. Mesmo com os importadores de fertilizantes pagando fortunas em demurrage com os navios esperando para descarregar. Além de toda a riqueza da massa salarial, fretes e demais receitas que deixariam de ser auferidas por conta da ociosidade do bem público.

Esse impacto financeiro não se limita ao setor portuário: ele empobrece toda a Baixada Santista — e, no limite, o próprio país.

Enfim..

Situações como essa são tão absurdas que, por vezes, caímos na armadilha da incredulidade. Achamos que não é preciso nos expormos, pois está tudo tão “escancarado”, que alguém, em algum momento, vai parar isso. Mas não. Isso continua avançando.

O processo segue, firme, na entrega de um cais público como se fosse mera extensão de uma área de armazenagem. E o argumento é “ganhos de eficiência” — mesmo quando nem a prancha mínima contratual está sendo cumprida.

E, com isso, expulsam para outros portos volumes expressivos de fertilizantes que têm sido descarregados no cais público de Santos. E as poucas vozes que têm se levantado contra esse absurdo ainda não estão sendo ouvidas.

É preciso fortalecermos esse coro. Antes que seja tarde demais.

Ewerton John

Advogado e empresário, é sócio-diretor do Grupo Orion - operador portuário e agência marítima - e da Callidus Tecnologia. Atua na área de comércio internacional, com foco em logística portuária, há mais de 40 anos.

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